terça-feira, 7 de março de 2017

“As notícias que nos chegam de África são sempre más”: parte I

O imbondeiro* estava lá, firme, imponente. Fiquei parada a olhar para ele. Reza a lenda que é curandeiro. Enrugado de velho, sussurra... sussurra-nos África, aquela onde o deslumbre e a decadência se tocam, a abundância e a pobreza convivem de forma extremada. Não fosse o imbondeiro, na narrativa de Mia Couto, um “abrigo às personagens fatigadas”. Aproximei-me mais, fiquei em silêncio, e percebi que não mais regressaria a mesma. Luanda já me tinha marcado, ainda não sabia era como.
Quando fazemos voluntariado, em locais distantes como estes, distantes em tudo, testando tudo, os trajetos que fazemos não são turísticos e as ruas por onde circulamos não são para turistas. Mergulhamos nos locais sem boia ou braçadeira e a sensação que temos é que estamos a submergir... debatemo-nos ruidosamente e gastamos todas as nossas forças lutando contra a constatação de uma realidade inaceitável e incomportável. Onde guardar, em nós, o confronto com a miséria extrema. Com os “ninguéns” de Eduardo Galeano, “os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida (...). Que não são, embora sejam. Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não têm cultura, têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata” (Livro dos Abraços).
Depois de nos debatermos ruidosamente, vem o silêncio. O imbondeiro já me tinha sussurrado! E foi nesse silêncio de recetividade (que é diferente de aceitação) que a história se construiu. Umas vezes histórias, outras vezes estórias.
Visitamos e conhecemos vários projetos que estavam a ser desenvolvidos por missões religiosas nos bairros mais pobres de Luanda. Poucos quilómetros significavam horas no trânsito. Andar a pé não era opção, por questões de segurança (não fosse Angola, à data (2007), o 10.º país mais violento e inseguro do mundo). Parecia haver apenas uma estrada, todas iguais, entupidas de carros colados à traseira de outros, motas apressadas e desgovernadas, buzinas ensurdecedoras. Buracos, engarrafamentos, acidentes, atropelamentos. Pó, poeira, uma névoa.
Musseques** que beiram a estrada, mercados de rua a perder de vista, o único lugar onde os/as angolanos/as pobres conseguem comprar alguma coisa. O que esperar quando a cerveja é mais barata do que água? Ruas sem passeios, sujas de lixo que se acumula e esgotos a céu aberto, onde se vende comida e brincam crianças. Correm por todos os lados, descalças ou de chinelos, barulhentas como se querem, chapinham nas poças de água turva que a últimas chuvas encheram. Uma em cada três crianças não passa os três anos de idade, contavam-me.
A cor das capulanas das mulheres decorava as ruas e fixava o meu olhar. Não pela cor mas pela condição. Mulheres carregando os filhos às costas, ao mesmo tempo que suportam o peso da mercadoria que vendem nas ruas. Equilibram sobre a cabeça sacos, cestas e bacias, parecendo desafiar as leis da física. Chamam-lhes zungueiras. Circulam apressadas, não há tempo a perder, são elas as lutadoras e provedoras do lar. Numa inexorável marcha de vida, percorrem a cidade o dia todo. Por isso grande parte dos projetos de desenvolvimento comunitário têm as mulheres como destinatárias, dizia-me a responsável por um desses projetos. Neste mês dedicado à Mulher, tributo esta crónica à mulher zungueira, exemplo de coragem e dignidade, mas também expressão da condição da mulher pobre em África, vítima das mais variadas formas de violência.
Dizem que o imbondeiro é curandeiro, sussurra-nos África... nem sempre a que queremos ouvir, mas a que precisamos de saber.
(To be continued...)

* Imbondeiro ou embondeiro é uma árvore também conhecida como Baobá Africano. Possui um tronco muito espesso na base, pode atingir até nove metros de diâmetro, que se vai estreitando em forma de cone. É considerada uma árvore sagrada. 
**Bairro de construção precária, nos arredores de uma grande cidade, onde habitam os moradores menos favorecidos












Fotografias de: Bernardino Silva



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