O imbondeiro* estava lá, firme, imponente.
Fiquei parada a olhar para ele. Reza a lenda que é curandeiro. Enrugado de
velho, sussurra... sussurra-nos África, aquela onde o deslumbre e a decadência
se tocam, a abundância e a pobreza convivem de forma extremada. Não fosse o imbondeiro,
na narrativa de Mia Couto, um “abrigo às personagens fatigadas”. Aproximei-me
mais, fiquei em silêncio, e percebi que não mais regressaria a mesma. Luanda já
me tinha marcado, ainda não sabia era como.
Quando fazemos voluntariado, em locais
distantes como estes, distantes em tudo, testando tudo, os trajetos que fazemos
não são turísticos e as ruas por onde circulamos não são para turistas.
Mergulhamos nos locais sem boia ou braçadeira e a sensação que temos é que estamos
a submergir... debatemo-nos ruidosamente e gastamos todas as nossas forças
lutando contra a constatação de uma realidade inaceitável e incomportável. Onde
guardar, em nós, o confronto com a miséria extrema. Com os “ninguéns” de
Eduardo Galeano, “os nenhuns, correndo
soltos, morrendo a vida (...). Que não são, embora sejam. Que não falam
idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que
não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos
humanos. Que não têm cultura, têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que
não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas
páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a
bala que os mata” (Livro dos Abraços).
Depois de nos debatermos ruidosamente,
vem o silêncio. O imbondeiro já me tinha sussurrado! E foi nesse silêncio de
recetividade (que é diferente de aceitação) que a história se construiu. Umas
vezes histórias, outras vezes estórias.
Visitamos e conhecemos vários projetos
que estavam a ser desenvolvidos por missões religiosas nos bairros mais pobres
de Luanda. Poucos quilómetros significavam horas no trânsito. Andar a pé não
era opção, por questões de segurança (não fosse Angola, à data (2007), o 10.º
país mais violento e inseguro do mundo). Parecia haver apenas uma estrada,
todas iguais, entupidas de carros colados à traseira de outros, motas
apressadas e desgovernadas, buzinas ensurdecedoras. Buracos, engarrafamentos,
acidentes, atropelamentos. Pó, poeira, uma névoa.
Musseques** que beiram a estrada, mercados de rua a perder de
vista, o único lugar onde os/as angolanos/as pobres conseguem comprar alguma
coisa. O que esperar quando a cerveja é mais barata do que água? Ruas sem passeios, sujas de lixo que se
acumula e esgotos a céu aberto, onde se vende comida e brincam crianças. Correm
por todos os lados, descalças ou de chinelos, barulhentas como se querem,
chapinham nas poças de água turva que a últimas chuvas encheram. Uma em cada
três crianças não passa os três anos de idade, contavam-me.
A cor das capulanas das mulheres decorava
as ruas e fixava o meu olhar. Não pela cor mas pela condição. Mulheres
carregando os filhos às costas, ao mesmo tempo que
suportam o peso da mercadoria que vendem nas ruas. Equilibram sobre a cabeça
sacos, cestas e bacias, parecendo desafiar as leis da física. Chamam-lhes
zungueiras. Circulam apressadas, não há tempo a perder, são elas as lutadoras e
provedoras do lar. Numa inexorável marcha de vida, percorrem a cidade o dia
todo. Por isso grande parte dos projetos de desenvolvimento comunitário têm as
mulheres como destinatárias, dizia-me a responsável por um desses projetos. Neste
mês dedicado à Mulher, tributo esta crónica à mulher zungueira, exemplo de
coragem e dignidade, mas também expressão da condição da mulher pobre em
África, vítima das mais variadas formas de violência.
Dizem que o imbondeiro é curandeiro,
sussurra-nos África... nem sempre a que queremos ouvir, mas a que precisamos de
saber.
(To
be continued...)