☆ Nas diferentes crónicas que escrevi sobre a
minha viagem à Índia, nenhuma delas foi dedicada especificamente às crianças.
Algo que se tornou (emocionalmente) muito forte quando fui ver o filme “Lion –
a longa estrada para casa”, uma história verídica de perseverança, que retrata
a vida de uma criança – Saroo - que, com
apenas cinco anos, se perdeu do irmão ao adormecer na carruagem vazia de um
comboio que o levou a Calcutá, a mais de 1500 km da sua terra natal. Declarada
como criança desaparecida foi adotado por um casal australiano. Nunca se tinha
questionado sobre as suas origens até entrar na universidade e a amizade com
colegas indianos lhe trazer memórias do passado, que o fez iniciar uma busca
obcecada pela mãe e pelos irmãos, que encontra passados vinte cinco anos, no
mesmo dia em que tinha desaparecido.
Assistir ao filme fez-me regressar às ruas
de Nova Deli, e tornou ainda mais clara e evidente a presença das crianças.
Sempre lá... muitas, imensas. Ao ter andado por zonas mais populares, a miséria
compunha o cenário. Ver Saroo vadiando e dormindo pelas ruas e pelas estações
de comboio, reavivou as minhas memórias. A memória de ver crianças pequenas deambulando
sozinhas pelas ruas, procurando comida nas lixeiras ou dormindo nos passeios
(umas sozinhas, outras em grupos ou com os familiares). Crianças sujas e mendigas a
correr atrás do turista. Crianças fazendo artes circenses nos comboios para
ganhar algum dinheiro. A rua é a sua casa e as zonas turísticas os seus locais
de trabalho. Crianças que não deviam estar ali. Muitas, imensas.
Mas eram crianças... de olho grande, riso
aberto e alegria espontânea.
Ver Saroo a tentar sobreviver na gigantesca
cidade Calcutá, a ser ignorado, enganado ou perseguido, e a ser
institucionalizado num centro de acolhimento onde as crianças eram vítimas de diferentes formas de violência, reavivou a memória
de um pensamento persistente: ao serem invisíveis e sobrantes numa sociedade
que não tem espaço para elas, estas crianças tornam-se visíveis e vulneráveis a
todas as formas de perigo: às milícias populares, às redes de tráfico de
pessoas para fins comerciais de exploração sexual (prostituição, redes de
pedofilia, turismo sexual e pornografia), de exploração laboral ou de adopção,
aos casamentos forçados, e ao abuso sexual. Na Índia, milhares de crianças são
dadas como desaparecidas e estima-se que, todos os anos, cerca de 135 mil
menores caiam nas redes do tráfico de pessoas. Muitas, imensas, que pertencem
à população dos que “não contam”.
Assistir ao filme fez-me regressar às ruas
de Nova Deli, e tornou ainda mais clara e evidente a invisibilidade social das
crianças. De facto, “quando não se é visto e se vê, o mundo oferece o
horizonte mas furta a presença”. Tudo aparece apenas à visão, mas
não ao toque ou à troca e, por isso, a vida social fecha-se à participação.
Mas são crianças... de olho grande, riso aberto e alegria espontânea... e têm o direito de encontrar o caminho para casa. ★
Mas são crianças... de olho grande, riso aberto e alegria espontânea... e têm o direito de encontrar o caminho para casa. ★
Fotografias tiradas por Marcelo Andrade
Só quem vê com o coração, consegue transmitir o que transmites, de forma tão clara e singela. Beijinho. 😊
ResponderEliminarEu é que agradeço teres lido. É bom quando o que escrevemos tem algum impacto e remexe por dentro. Um beijinho
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