sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

‘Saroo’ e a infância na Índia: reatando memórias de uma viagem

☆ Nas diferentes crónicas que escrevi sobre a minha viagem à Índia, nenhuma delas foi dedicada especificamente às crianças. Algo que se tornou (emocionalmente) muito forte quando fui ver o filme “Lion – a longa estrada para casa”, uma história verídica de perseverança, que retrata a vida de uma criança – Saroo -  que, com apenas cinco anos, se perdeu do irmão ao adormecer na carruagem vazia de um comboio que o levou a Calcutá, a mais de 1500 km da sua terra natal. Declarada como criança desaparecida foi adotado por um casal australiano. Nunca se tinha questionado sobre as suas origens até entrar na universidade e a amizade com colegas indianos lhe trazer memórias do passado, que o fez iniciar uma busca obcecada pela mãe e pelos irmãos, que encontra passados vinte cinco anos, no mesmo dia em que tinha desaparecido.
Assistir ao filme fez-me regressar às ruas de Nova Deli, e tornou ainda mais clara e evidente a presença das crianças. Sempre lá... muitas, imensas. Ao ter andado por zonas mais populares, a miséria compunha o cenário. Ver Saroo vadiando e dormindo pelas ruas e pelas estações de comboio, reavivou as minhas memórias. A memória de ver crianças pequenas deambulando sozinhas pelas ruas, procurando comida nas lixeiras ou dormindo nos passeios (umas sozinhas, outras em grupos ou com os familiares). Crianças sujas e mendigas a correr atrás do turista. Crianças fazendo artes circenses nos comboios para ganhar algum dinheiro. A rua é a sua casa e as zonas turísticas os seus locais de trabalho. Crianças que não deviam estar ali. Muitas, imensas.
Mas eram crianças... de olho grande, riso aberto e alegria espontânea.
Ver Saroo a tentar sobreviver na gigantesca cidade Calcutá, a ser ignorado, enganado ou perseguido, e a ser institucionalizado num centro de acolhimento onde as crianças eram vítimas de diferentes formas de violência, reavivou a memória de um pensamento persistente: ao serem invisíveis e sobrantes numa sociedade que não tem espaço para elas, estas crianças tornam-se visíveis e vulneráveis a todas as formas de perigo: às milícias populares, às redes de tráfico de pessoas para fins comerciais de exploração sexual (prostituição, redes de pedofilia, turismo sexual e pornografia), de exploração laboral ou de adopção, aos casamentos forçados, e ao abuso sexual. Na Índia, milhares de crianças são dadas como desaparecidas e estima-se que, todos os anos, cerca de 135 mil menores caiam nas redes do tráfico de pessoas. Muitas, imensas, que pertencem à população dos que “não contam”.
Assistir ao filme fez-me regressar às ruas de Nova Deli, e tornou ainda mais clara e evidente a invisibilidade social das crianças. De facto, “quando não se é visto e se vê, o mundo oferece o horizonte mas furta a presença”. Tudo aparece apenas à visão, mas não ao toque ou à troca e, por isso, a vida social fecha-se à participação.
Mas são crianças... de olho grande, riso aberto e alegria espontânea... e têm o direito de encontrar o caminho para casa. 

 

Fotografias tiradas por Marcelo Andrade

2 comentários:

  1. Só quem vê com o coração, consegue transmitir o que transmites, de forma tão clara e singela. Beijinho. 😊

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    1. Eu é que agradeço teres lido. É bom quando o que escrevemos tem algum impacto e remexe por dentro. Um beijinho

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